A VARANDA ou A MULHER QUE VIA PASSAR OS COMBÓIOS
Há qualquer coisa no ar que me incomoda. Não sei o que é, só sei o que sinto.
E neste discurso na primeira pessoa, me encontro encostada ao parapeito da minha varanda, fumando cigarro atrás de cigarro, deixando o pensamento vaguear e o olhar perder-se, na luz do fim da tarde que já não é fim de tarde mas ainda não é noite...
recosto-me contra a parede do prédio, sentindo nas pernas o roçagar do pêlo do meu gato, que salta repentinamente para o espaço que há um minuto eu ocupava, enquanto a gata me olha, com os seus grandes olhos azuis, belos e profundos, a questionar o silêncio da dona...
Estou em silêncio, silêncio de recolhimento por uma luz citadina que não o é, uma luz híbrida de rosas e lilás, onde o azul, os azuis se entrecruzam com os laranjas e deixo-me ir, sempre encostada contra a parede, a ver os laranjas a desmaiar e a tornarem-se cada vez mais dourados gloriosos.
Cigarro na mão, pensamento no combóio que, britânicamente, passa por baixo da minha varanda. Vinte e quatro horas por dia, os combóios passam, modernos ou nem tanto, bem de noite vem sempre o mercadorias, grande, lento, ronceiro, e
àquela hora, com a noite obscenamente a descer, rasgada, no céu, por traços de intenso laranja, pergunto-me o que farão as dezenas de pessoas que dentro dos combóios lá vão, para destinos que ignoro. Irão alegres, felizes ? Virão dos empregos ? Irão para quem ? Quem as espera depois da estação ?
quem estará ali, na minha estação, na estação da minha casa, à procura delas ? E porque sairão ali?
- Para irem a correr apanhar o metro, penso eu, sempre em solilóquio, sempre encostada ao varandim, e pensando vejo o Oscar a ser passeado pela dona, igual hoje ao que era há cinco anos - ele e a dona, iguais, iguaizinhos, no passeio, no andar, no vestir... e vejo os carros que por ali se abeiram, uns de passagem, breve e rápida com destinos certos e objectivos determinados, outros a procurar estacionamento, e vejo a rapariguinha negra que mal se aguenta nos saltos de dez centímetros,
e
por mais que eu não queira, sinto uma enorme vontade de rir, esquecendo-me, insensata, de quantas vezes rodopiei para me aguentar noutros de igual altura...
Mais um combóio, mais uma voz da menina da Fertagus a anunciar o combóio para o Fogueteiro na linha 4, mais um grupo de gente que sai e se mete, apressada pelo túnel e desaparece para sair já longe do meu olhar, três táxis que passam, a vizinha de cima que se lembra de vir sacudir o raio do tapete,
e que me faz recuar para não apanhar o lixo, pensando que aquilo não era vida para um ser vivente, acendendo mais um cigarro e voltando ao parapeito da minha varanda, para sentir que no ar há qualquer coisa que me incomoda e não sei o quê....
cigarro na mão e mão no varandim, lentamente percorro a minha varanda de uma ponta à outra, de trás para a frente, de frente para lá, olhos no alto, prescrutando os telhados dos prédios em frente, reparando nas luzes que já se vêm nas janelas, pressentindo o movimento das pessoas nas casas de divisão em divisão - Olha, ali está um tipo com um copo na mão; que giro! também vem para a varanda;a dele; e ali, há quem pendure roupa...vê-se que veio da praia, há calções e uma toalha; mais ali, abre-se uma janela, de par em par e a música está tão alto que consigo ouvi-la; não, não é música...é a televisão que está aos berros, santo Deus.
Mais meia hora se passou, a noite está aí, esplêndida, ao convite para os derrames da alma, com a serenidade das coisas belas e intranquilas, e sempre debruçada numa varanda diferente, a mesma mas diferente, reparo na chegada movimentada daquele grupo de automóveis de onde saiem, numa cadência ensaiada, homens e homens (onde estarão as mulheres que os irão acompanhar ? já estarão lá dentro?). O lá dentro é do outro lado da linha dos combóios que, também naquela mesma cadência ensaiada da voz da menina da Fertagus, continuam a chegar e a partir, na minha estação terminal...
A minha varanda dá para uma estação de combóios...Estou dentro de Lisboa, em cima de uma estação de combóios, que tem um jardim lindo do lado esquerdo e um jardim feio do lado direito. Felizmente, estou no lado esquerdo, penso eu, neste monólogo de ideias errantes, desta vez a olhar para o autocarro 27 que tem terminal no jardim feio.
Deve ser o último da noite, a carreira termina cedo, sempre monologando, sempre de cigarro nos dedos e sempre sentindo que há qualquer coisa no ar que me incomoda, mas ainda não sei o que é....
Não sei o que é....e só me lembro do desencanto de hoje e no encanto do meu ontem. Ah, pois, Maria (todas somos Marias, num dia qualquer das nossas vidas), penso eu com o ar da descoberta e o sorriso da Mona Lisa - são "Os Dias Felizes"...É o eterno Samuel Beckett a puxar por ti...
Tem graça...sinto-me mais à espera de Godot, continuo soliloquando, desta vez gozando comigo própria.
À Espera de Godot, lembrando os Dias Felizes enquanto Via Passar os Combóios...Maria, Maria, não tens cura! Tu e os teus trocadilhos, de que te havias de lembrar, o melhor que tens a fazer é ires dormir, que isso passa-te.
Mas não - os combóios continuam a passar, totalmente indiferentes aos meus pensamentos cheios de nicotina e vagar, de olhar lento perdido no azul intenso desta noite,
saindo da minha varanda e correndo para o computador porque descobri que já não sei escrever com caneta e papel...vagueando pela minha Lisboa, afastando-me das pessoas que enchem os passeios, sorrindo para as crianças que a esta hora ainda andam por aí, mão dada com os pais,
ouvindo ao longe ainda a voz da menina da Fertagus, cada vez mais e mais longinqua, subindo a escada, ligando a luz e o computador, abrindo de par em par outra varanda, outra varanda minha,
que já não me mostra o combóio, só a vida...e a noite...e os sons da vida e da noite...
pensando que há qualquer coisa no ar, esta noite, que me incomoda...e não sei o que é. Só sei o que sinto.
Fernanda Maria Gouveia
28 Junho 2004
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