quarta-feira, 8 de abril de 2009

Do Álbum: URBANIDADES - I

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URBANIDADES
Percorro diariamente a cidade no 27. Isto de se viver numa ponta de Lisboa e trabalhar na outra tem os seus encantos. Os fim de semana e os feriados proporcionam-me outras delícias, porque o 27 descansa e eu sou obrigada a mudar de trajecto, que varia conforme o tempo e a disposição.
Hoje a minha disposição era cinzenta e preguiçosa, enfiei-me logo no 60 para vir aterrar à porta do trabalho, sem andar a mudar de linha ou para o metropolitano, que também preenche muitas das divagações que me divertem nos percursos, a observar as gentes e os cheiros, a absorver as palavras e os gestos, muitas e muitas vezes inquietantes.
Hoje construí-me de velhos e velhas, saídos das cascas-casas com o sol magnífico que por aqui faz e um friozinho meio de rachar, porque já houve bem pior. Surpreendi-me logo na paragem de entrada, com duas velhas todas de negro, que me levaram de imediato aos hábitos da minha infância que ditavam ser obrigatório um luto carregado toda a vida, sob pena de desenvergonhice social cuscuvilhada nas vizinhas e porteiras. As duas velhotas não queriam o autocarro para nada, queriam o banco da paragem para, entre doenças e desgraças que contavam uma à outra, cheias de lástima entusiasmada, fazerem a sua reserva do sol e do calor que as iria aquecer à noite, cada poro da sua pele era um frasquinho de sol, qual botija de água quente para o corpo e para a alma. A avenida, tão larga que é, rejubilava à luz daquela hora, e a quietude sentia-se perturbada por dois ou três passantes, vagarosos, lá vai uma senhora a passear o cãozinho, e aqui na paragem as duas velhas entre as doenç as que lhes levaram os defuntos....E eu, tão distante disto tudo, a amaldiçoar os horários que nunca se cumprem e o autocarro que não chegava, mas lá chegou, cheio...de outros velhos e velhas que hoje saíram das suas cascas-casas para vir abarrotar o transporte, em molhinhos de gente que pouco sai e pouco passeia e que anda no autocarro ao domingo para ir ao cemitério. Pensei eu, que o 60 vai para o cemitério da Ajuda.
Encasulada no meu assento, de olhos fechados para dormitar fingidamente, antes que me pedissem o lugar, fui rodeada de vozes altas e risonhas, de conversas mais gritadas que faladas, que cada um ia entalado no meio de muitos, com telemóveis de filhos a perguntarem pela mãe, com projectos de passeios em amizades de grupo que, generosamente ali compartilharam bilhetes, que uns tinham e outros não...E, ai que tenho de me sentar, ai a minha perna não me larga! Ó dona Deolinda, atão nã tá milhor? Tome lá um bilhetinho dos meus, ó senhora, que eu tenho a mais, tenho é de me sentar para abrir a mala....Atão mas isto vai pela Baixa? Ah, é ao domingo, porque eu não tenho passado por aqui, olhando a Praça da Figueira ou o Largo da Câmara.
Deixando-os a falar e contentes porque eu deixava um lugar para eles, saí em Santos, no meio de música que uma banda debitava, não percebi bem o que era porque o compositor estava ser livremente distorcido pelos metais e pelos claxons dos carros, que queriam andar e não os deixavam, subi as minhas escadas e abri a varanda, de par em par, para deixar entrar um sol meio cristalino que não me aqueceu.
Em Lisboa, 6 Março, já à espera do dia 7. "


Já não sei ao certo se este álbum e outros que aqui trarei, são todos de 2004 ou já de 2005. Não interessa. É por aí.....

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