"URBANIDADES
As pessoas, para mim são rostos. E olhos. Olhares. Mais nada. Nada representa o que vestem, ou se ornam, ou ostentam. O olhar. Apenas o olhar. Hoje, que recebo a troca de memórias rurais em Ruralidades que me enviaram, directas à alma mais do que à escrita, sinto que os rostos e os olhos das minhas pessoas, das pessoas onde me movo e onde me vivo, são, de facto, citadinas. A cidade tem cada vez mais idosos e cada vez menos velhos - os velhos, ou as velhas, de negro ataviadas, de lenço preto a tapar cabelos e a testa, todas viúvas, todas enrugadas, partidas pelo sol e pela vida, rosário nos dedos e lábios ligeiros em ladaínhas, desapareceram da minha cidade. Mesmo os velhos e as velhas que encontro diariamente nos meus transportes, transportam-se a todo o lado, menos às velhas da Ruralidade. Ou as ciganas. As ciganas que encontro cada vez mais no metro e que mostram decotes, já pouco têm a ver com as ciganas da minha juventude. Um dia aqui falarei da Amparo, cigana/Mulher ímpar da infância das minhas interrogações. Hoje, transportei-me num eléctrico, o 25, que recolheu uma cigana, das antigas, mulher para aí com uns 5o anos, à boa maneira antiga - todinha de preto, até no olhar. Um olhar triste mas que fulminava, fulgurante, enquanto fazia perguntas e remoía remoques de desagrado. Saiu antes de mim, sempre desagradada. Levou os desagrados com ela, ali para as beiras de Santos, à procura de outro transporte. Deixou-me o olhar.
Em Lisboa, aos 21 de Março, ouvindo o eléctrico lá fora. "
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